Dr. Sandro Luiz Bazzanella

Estamos diante de acontecimentos políticos, jurídicos e econômicos que demarcam um contexto político, social e econômico específico e urgente em nossa frágil e deficitária democracia. A trinta e um anos após abertura política em 1984 com a mobilização da sociedade brasileira em torno do "Movimento Diretas Já", encerrando 20 anos da ditadura militar, a vinte e dois anos do impeachment do presidente Fernando Collor de Melo em 1992 acusado de envolvimento com esquemas de corrupção articulados pelo seu tesoureiro de campanha estamos as voltas com o impeachment da presidente Dilma Vana Roussef (eleita por 54 milhões de votos) em processo eleitoral legal amparado pelo Supremo Tribunal Eleitoral.

Paradoxalmente Dilma V. Roussef foi presa e torturada pelo regime militar. Até o presente momento não se circunscreve em sua biografia envolvimento com esquemas de corrupção e apropriação indébita de recursos públicos.  É acusada de suposto crime de responsabilidade fiscal por meio de práticas de pedaladas fiscais. Ou seja, de acordo com seus algozes, tais práticas da presidente teriam desestabilizado a economia, promovido o desemprego, o aumento da inflação, o crescimento negativo do PIB (Produto Interno Bruto), entre outros argumentos estatísticos e obscuros desta natureza. 

Em nome de um suposto estado de emergência econômico justifica-se o estado de exceção em que estamos inseridos. Para o filósofo Giorgio Agamben o estado de exceção apresenta-se na forma jurídico-política da suspensão do ordenamento jurídico vigente como condição de sua preservação. Nestes primeiros meses de 2016, "assistimos" por meio do "ativismo jurídico" dos Ministros do Supremo Tribunal Federal a efetivação do estado de exceção, corroborando também com o argumento de Carl Schmitt de que o direito e a aplicabilidade da lei não se apresentam como fins em si mesmos, mas obedecem a lógica das decisões políticas. "A ordem jurídica, como toda ordem repousa em uma decisão e não em uma norma".

Numa clara distorção dos preceitos constitutivos do Estado moderno fundado sobre um sistema de pesos e contrapesos situados na interdependência dos três poderes (executivo, legislativo e judiciário), o poder judiciário assumiu condição de poder soberano tomando decisões de competência do legislativo, ou mesmo do executivo.  Ou seja, o STF abandona a natureza de sua condição de guardião e intérprete da carta constitucional, para decidir e impor suas decisões aos demais poderes legitimamente constituídos.  O exercício do poder soberano por parte do poder judiciário se constitui pela fragilidade do poder legislativo, mas também como justificativa e argumento de autoridade (legal) vinculado a  vontade política de congressistas em relação ao afastamento do chefe do poder executivo para que supostamente se alcance o estado de normalidade. Aqui é preciso ter presente a máxima de Giuseppe Tomasi di Lampedusa: "tudo deve mudar para que tudo fique como está".

Para Montesquieu o poder legislativo se apresenta como o mais importante dos três poderes, na medida em que tem a responsabilidade de representar os interesses dos cidadãos. Porém, novamente o que estamos "assistindo" no caso brasileiro é um poder legislativo marcadamente corrupto, atingindo parte significativa de deputados e senadores. Um poder que se especializou na defesa de interesses particulares, de grupos, locupletando-se com os recursos públicos, exercendo tráfico de influência para benefício de fins privados em detrimento de questões de interesse social, bem como de decisões de interesse estratégico do bem público.

A efetivação do estado de exceção em que estamos inseridos demonstra de forma inequívoca os paradoxos em que se encontram inseridos os poderes de estado e, neste caso especificamente poder executivo brasileiro. Com os Estados reduzidos em sua soberania a condição de agências garantidoras dos contratos com a economia financeirizada global, resta como tarefa aos governos nacionais instaurar um estado de segurança, de controle, de plena gestão da vida dos indivíduos e da população como forma de conferir e de apresentar as garantias necessárias de rentabilidade e segurança do capital investido. "A expressão "por razões de segurança" funciona como um argumento de autoridade que, cortando qualquer discussão pela raiz, permite impor perspectivas e medidas inaceitáveis sem ela. É preciso opor-lhe a análise de um conceito de aparência banal, mas que parece ter suplantado qualquer outra noção política: a segurança". (Agamben). Na esteira destes paradoxos assistimos nos últimos anos o poder executivo governar por meio da proliferação de medidas provisórias (MPs) usurpando do poder legislativo sua principal atribuição de legislar em garantida dos interesses públicos. Ademais, como justificativa de constituição de um regime de garantia de governabilidade estabeleceu-se relações promiscuas entre o poder executivo e o poder legislativo, expresso na distribuição de cargos, de favores, de loteamento da máquina pública, bem como na distribuição de recursos públicos do orçamento federal na forma de verbas parlamentares a distribuição das mesmas aos seus nichos eleitorais.

Porém, a instauração e a vigência do estado de exceção em que estamos inseridos conta ainda com a parcimônia dos cidadãos inseridos na lógica de uma sociedade de plena produção e consumo. Nesta direção, Agamben aponta para "o fato de ser cidadão é algo indiferente".   Ou ainda, na perspectiva do filósofo, "Atualmente, o poder tende a uma despolitização do status de cidadão". Estamos diante do fenômeno da redução da cidadania a condição da opinião pública.  O esvaziamento do debate político como efetivação do espaço público e garantia do bem comum remete a conformação da opinião pública ansiosa por segurança em relação a vida privada, de garantias de subsistência à condição de indivíduos inseridos na esfera da produção e do consumo, conformando bases da dinâmica financeirizada das formas de vida na contemporaneidade.

Sob este conjunto de variáveis e, outras tantas que podem ser contempladas justifica o argumento de que estamos vivendo em pleno estado de exceção e, que na interinidade do governo de plantão "assiste-se" cotidianamente a discursos que anunciam ameaças aos direitos sociais, a venda do patrimônio público, como único caminho possível de conferir garantias de rentabilidade e segurança ao capital financeiro global. E uma vez mais, nesta direção, mostra-se pertinente o argumento de Agamben no que se refere a polifonia profusa de discursos em defesa da democracia.  "A democracia é uma ideia incerta, porque significa, em primeiro lugar, a constituição de um corpo político, mas significa também e simplesmente a tecnologia da administração - o que temos hoje em dia. Atualmente, a democracia é uma técnica do poder - uma entre outras."

Esclarece ainda Agamben, que "A crise atual tornou-se um instrumento de dominação. Ela serve para legitimar decisões políticas e econômicas que de fato desapropriam cidadãos e os desprovêem de qualquer possibilidade de decisão", o que significa ter presente a luz da perspectiva analítica agambeniana que estamos diante de inúmeros desafios, entre eles: a) reconhecer que estamos imersos em pleno estado de exceção, que em sua condição de suspensão da ordem jurídica como garantia da mesma promove na contramão dos discursos dos operadores do judiciário e, da crença socialmente difundida a insegurança jurídica. Ou seja, neste momento somos todos homni sacri, vida nua; b) é tarefa de nosso tempo profanar as categorias e concepção políticas nas quais estamos inseridos como condição sine qua non da política que vem.

Dr. Sandro Luiz Bazzanella

Professor de Filosofia e do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional

Líder do Grupo de Estudo em Giorgio Agamben

Lider do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas (CNPq).

Universidade do Contestado