Por Dr. Sandro Luiz Bazzanella
Talvez se possa afirmar com certa segurança (mesmo vivendo em tempos de insegurança) que uma das palavras mais pronunciadas em conversas cotidianas, em discursos políticos, em análises científicas, na imprensa falada e escrita é a palavra "crise". Esta intensidade discursiva em torno do vocábulo crise é sintomática. Aponta para a intensidade de acontecimentos políticos, econômicos e jurídicos nos quais estamos inseridos. Mais do que isto, indica que tais esferas constitutivas da sociedade não andam bem, encontram-se desalinhadas em relação aos interesses e aos desafios que se apresentam aos povos e, neste caso ao povo brasileiro, frente aos desafios de um mundo globalizado em suas trocas, intercâmbios comerciais e economicamente financeirizado.
O uso intensivo de um vocábulo, de um conceito não significa que o tenhamos compreendido em sua extensão e profundidade. Em certos casos o contrário apresenta-se verdadeiro. A intensidade de sua manifestação revela a perda da compreensão de seu real significado. Nesta direção, torna-se fundamental retomar sua definição. Vejamos a forma como se apresenta a palavra crise no dicionário de filosofia (é em momentos de crise que se recorre a filosofia, afinal ela é a guardiã os preceitos civilizatórios nos quais estamos inseridos) de autoria do filósofo italiano Nicola Abbgnano. "Crise (in. Crisis; fr. Crise; al. Krisis; it. Crisi). Termo de origem médica que, na medicina hipocrática, indicava a transformação decisiva que ocorre no ponto culminante de uma doença e orienta o seu curso em sentido favorável ou não (...). Em época recente, esse termo foi estendido, passando a significar transformações decisivas em qualquer aspecto da vida social."
Nesta resumida definição de crise (a definição constante no dicionário apresenta outros elementos) constata-se as seguintes perspectivas: 1ª O conceito esta presente no percurso civilizatório ocidental; 2ª Inicialmente vinculado a medicina transita na modernidade para questões de ordem social. 3ª Em ambas dimensões (médica e social) o termo crise pressupõem movimento, passagem, transição de uma condição vital, ou social, a outra condição de manutenção da vida, ou mesmo de sua negação pela morte, da ordem social, ou de sua alteração e conformação sobre novas bases societárias. 4ª Em todas estas situações o termo crise denota seu sentido ontológico (forma do ser no mundo, de ser e participar dele), político (manter ou não vida, a ordem social implica na tomada de decisões), ética (a tomada de decisões requer a clareza de critérios, entre eles o de bem comum) e, estética (decisões amparadas por critérios podem apresentar-se equilibradas, harmônicas, belas).
A partir do exposto e sugerido como reflexão até o presente momento, pode-se argumentar que o conceito "crise" apresenta duas outras variáveis. 1ª Crise como expressão dialética; 2ª Crise como expressão entrópica. Encontramos as duas formas presentes na vida dos indivíduos e das sociedades ocidentais. No primeiro caso a crise se revela como movimento que desestabiliza a ordem vital, ou social. Segue-se a esta condição período de incertezas, de insegurança que exigem esforços significativos para sua superação. A superação apresenta-se como novo estágio, como nova ordem vital ou social. No segundo caso a crise (entropia) leva ao definhamento do paciente ou da ordem social, na medida em que expõem a dura e traumática realidade da falência vital ou social em curso. São exemplos da crise em sua versão dialética: a Reforma Protestante (Lutero) e a Contra Reforma Católica (Concilio de Trento), a Revolução Americana, a Revolução Francesa, as revoluções científicas. São exemplos da crise em sua versão entrópica: a falência do mundo antigo, a derrocada do Império Romano, a falência da cosmovisão judaico-cristã medieval, a Revolução Russa de outubro de 1917.
A crise política e econômica na qual estamos inseridos indica para o modelo entrópico pelos seguintes motivos: a) Sistema político partidário desacreditado, desmoralizado pela evidência de loteamento da máquina estatal e, por derivação de atos corruptos; b) Percepção de que a democracia representativa, representa exclusivamente os interesses da classe política de plantão; c) redução do poder legislativo a casa de jogatina com recursos públicos e, balcão de negócios com o executivo; d) o poder executiva legislo freneticamente por medidas de provisórias; e) cumpre contratos remunerando generosamente o capital, justificado na lei de responsabilidade fiscal, que em certa medida se apresenta como lei de irresponsabilidade social, uma vez que a riqueza da nação (Adam Smith) é resultado do trabalho coletivo e, não da mera especulação de mercados financeiros; f) em nome da governabilidade o poder executivo alicia parlamentares e, concede generosos e imorais aumentos salariais ao judiciário; g) o poder judiciário assume a condição de "terceiro gigante" sobrepondo-se aos poderes legislativo e executivo, tomando decisões (atribuição do executivo) e legislando (atribuição do legislativo); h) a condição de sua legalidade (funcionários públicos concursados) não lhe confere legitimidade (condição alcançada por sufrágio universal); i) juízes apresentam-se cada vez mais criativos e proativos abandonando a condição de guardiões da lei (constituição) para dizer o que a lei é caracterizando a vigência de um estado de exceção permanente. j) afastamento de chefe do poder executivo a partir da suspeita de um estado de emergência econômica (responsabilidade fiscal/irresponsabilidade social), eivado de interesses políticos justificados pelo poder judiciário; k) Normalização da imoralidade dos representantes políticos e da sanha pecuniária do judiciário com seus aumentos salariais estratosféricos; l) interinidade/efetividade (o processo de impeachment já estava decretado na votação do dia 17/04/2016 na votação da Câmara do relatório da comissão de Impeachment) de um governo marcado também pela corrupção e pelo discurso de uma só nota: ajuste fiscal; m) população apática (sociedade de massas), alheia aos mandos e desmandos jurídicos e políticos; n) um sistema jurídico e político que representa somente a si mesmo e uma população descrente no sistema...
Crise entrópica do sistema. Está falido. Desmoralizado. Sangra. Desmorona a passos lentos em nome da "defesa da democracia"... Ah a democracia... É preciso considerar a perspectiva analítica de Agamben que considera o fato de que todos os governos do mundo são neste contexto ilegítimos. As próximas décadas deverão apontar tendências para outras formas de organização jurídica e política...
Dr. Sandro Luiz Bazzanella
Professor de filosofia na graduação e no Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional da Universidade do Contestado.
Líder do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas (CNPq)
Lider do Grupo de Estudo em Giorgio Agamben (GEA)
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