A Guerra do Contestado teve grande impacto em Canoinhas/SC. O conflito, que durou entre 1912 e 1916, chegou ao município em meados de 1914, quando a então vila foi atacada pelos rebeldes sob o comando de Bonifácio José dos Santos (Bonifácio Papudo), Ignácio de Lima, Tobias Lourenço de Souza, Antônio Tavares Júnior e Joaquim Gonçalves de Lima. Os movimentos de ataque à vila duraram desde julho de 1914 a dezembro do mesmo ano.
No entanto, o interior do município, que à época correspondia a uma área territorial bem maior do que atual, abrangendo, por exemplo, os atuais municípios de Major Vieira e Bela Vista do Toldo, continuava sob o domínio dos caboclos rebelados (no período, alcunhados de “fanáticos” ou “jagunços”). Várias eram as guardas e os redutos rebeldes no território do município. A título de exemplo, podem-se citar: as guardas do Piedade e dos Freitas; os redutos do Paciência, da Colônia Vieira, do Rio da Areia de Cima, do Tamanduá, dentre tantos outros.
Muitos deles não deixaram vestígios que sejam atualmente conhecidos, havendo apenas vagas menções em documentos e literatura da época sobre a sua localização. No entanto, outros legaram sinais que ainda são perceptíveis, mesmo que de modo sutil. Em geral, o que marca esses lugares é a existência de antigos cemitérios e cruzeiros. Embora muitos hajam desaparecido, os que restaram indicam, ao menos aproximadamente, qual era a localização dos redutos. Exemplo disso é o cemitério existente na localidade rural do Tamanduá.
Localizado no interior de Canoinhas, às margens do Rio Tamanduá, na divisa com o município de Timbó Grande, o cemitério ainda é bastante evidente, posto que cercado de reflorestamento de pinus (Pinus Elliotti). A necrópole, pouco utilizada hodiernamente, apresenta uma série de características que sugerem a sua antiguidade. A área, de aproximadamente 300 metros quadrados, contém algumas poucas sepulturas de alvenaria, mais recentes, portanto. As demais são marcadas pelas cruzinhas de madeira, muitas ainda preservadas, ou pelo que sobrou do característico montículo de terra. Além das sepulturas, o cruzeiro de madeira se encontra erigido.
Ao contemplar as imagens do cemitério e do Rio Tamunduá associando-as às descrições dos combates ali travados, mentalmente é possível imaginar o sofrimento que ali se passou e o sangue que jorrou naquele solo. A literatura aponta que o reduto do Tamanduá foi um dos maiores e mais importantes, durante a Guerra do Contestado. Demerval Peixoto, militar que participou da campanha, em seu livro “A Campanha do Contestado: episódios e impressões”, descreve, em diversos momentos, os fatos acontecimentos no lugar. Um deles foi a famosa expedição do capitão Tertuliano de Albuquerque Potiguara que, com uma coluna composta de 418 militares e 148 civis, saiu de Canoinhas, em março de 1915, chegando até o reduto de Santa Maria (atualmente, município de Timbó Grande). Durante o percurso, passou pelo reduto do Tamanduá, onde travou combate.
Após o mês de abril de 1915, quando o Exército Brasileiro deixou o teatro da campanha com a maior parte de seu contingente, o prosseguimento da guerra ficou a cargo do Regimento de Segurança de Santa Catarina (o equivalente à atual Polícia Militar), sob o comando do capitão Euclydes de Castro, e dos civis contratados. Acerca desse período, há diversas menções em jornais da época. Em entrevista publicada em 25 de janeiro de 1916, no jornal O Estado (SC), o capitão Maurício Mello descreveu os detalhes da investida sobre o reduto do Tamanduá, da qual participou.
O efetivo de ataque, saindo do acampamento na Serra do Lucindo (localidade atual do município de Bela Vista do Toldo), era composto por 168 civis e 26 praças da Polícia do Estado. Uma das razões da decisão de atacar porque a comida da tropa estava acabando, havendo sérias dificuldades de reabastecimento. Quando do ataque, o tiroteio durou aproximadamente três horas. Durante o combate, em meio a uma tentativa desesperada de fugir do reduto, muita gente se atirou ao Rio Tamanduá, perecendo afogada. A cena dos rostos de homens, mulheres e crianças fustigados pela fome e apavorados pelo tiroteio ocasionava verdadeiro terror: “o pavor dava formas horríveis àqueles infelizes, principalmente, às mulheres e crianças já desfigurados pela fome”.
Segundo o entrevistado, o reduto estendia-se por uma área de mais de três quilômetros, devendo ter mais de mil ranchos e mais de três mil pessoas o habitando entre homens, mulheres e crianças. Disse ainda calcular em cento e sessenta as pessoas que morreram, incluídas as que se afogaram. “A todas elas o capitão Euclydes mandou sepultar no cemitério do reduto”. Os que se apresentaram estavam em um estado lastimável: famintos e nus.
Terminado o combate, o suplício tanto de militares quanto de prisioneiros continuou. O retorno a Canoinhas, base de operações, demandava uma longa caminhada. Naquele tempo, o meio de transporte utilizado pelas forças eram os muares (cargueiros), algumas poucas montarias e a força das pernas. No entanto, para muitos, mesmo a força das pernas faltava. A fome e a doença haviam enfraquecido de tal maneira os prisioneiros que muitos morreram no caminho. Muitos doentes foram levados às costas. O próprio comandante da expedição, capitão Euclydes, carregou uma mulher doente por quase três léguas.
A guerra terminou, mas, atualmente, quem visita o antigo cemitério, em um esforço mental, pode tentar idealizar o que naquele local se passou. O Rio Tamanduá, modificado pela construção da represa Buriti, traz “testemunhas” dos fatos narrados. São os velhos troncos de imbuias que ainda remanescem salientes no lago da represa. Certamente, foram “espectadores” da hecatombe passada na região. Aos moldes do que o cantor e compositor Teixeirinha escreveu sobre a “grande figueira”, na música “Velho Casarão”, se essas velhas imbuais falassem contariam a história do que se passou há um século nas ribanceiras do Tamanduá...
Por Diego Gudas. Discente do Programa de Doutorado em Desenvolvimento Regional da Universidade do Contestado, Campus Canoinhas.
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