Embora repreendidos pela Polícia, pontos de prostituição nunca foram extintos na região, mas dez anos depois da proibição estão cada vez mais explícitos
Gracieli Polak
CANOINHAS/TRÊS BARRAS
Sol forte e clima abafado, poeira na rua que ladeia um dos mais famosos “bares de mulheres” de Canoinhas. Lá dentro, o clima é fresco e o ambiente não condiz com o que a imaginação popular credencia a este tipo de estabelecimento. Aberto durante o dia, as portas da ‘empresa’, como se refere sua dona ao bar, ficam abertas para quem quiser tomar uma bebida e, eventualmente, arrumar companhia.
De blusa amarelo ouro e maquiagem discreta, com um traço fininho do delineador azul metálico nos olhos, Paula* chega ainda com os cabelos molhados, pronta para mais um dia de trabalho. Silenciosa, a jovem mede as palavras e se revela minimamente, aos poucos. Falar sobre o passado e a forma como chegou à prostituição não parece ser fácil. “Não gosto de falar sobre isso”, diz e se cala, sem abrir espaço para uma nova pergunta.
Arlete*, a proprietária do local, no entanto, fala, defende e explica a prostituição. Vinda de família muito pobre, então com 18 anos de idade, ela foi expulsa de casa pelo pai, depois do nascimento da filha enquanto era solteira. Sem rumo, a jovem saiu de casa e, graças à ajuda da madrasta, pode deixar o bebê, então com 40 dias de idade. Voltou dez anos depois para buscá-la, casada e com outros filhos. Antes de encontrar o homem com quem se casou, Arlete “fez a vida”, trabalhou em muitos lugares, se tornou alvo de preconceito e discriminação. Anos mais tarde, separada do marido, voltou a trabalhar na noite, desta vez gerenciando estabelecimentos do gênero. No final de 1999 e começo de 2000, quando os meretrícios e boates da região foram fechados ela comandava uma casa de shows em Três Barras. Com a proibição, comprou um bar no Campo d’Água Verde que mantém até hoje. “Com alvará da prefeitura, regulamentado, tudo certo como determina a Lei. Todo ano pago meus impostos, não devo nada para ninguém”, explica.
FIM DAS BOATES?
Arlete conta que, no final de 1999, as áreas consideradas como “zonas” foram fechadas na cidade. O então delegado regional, Osmar Amorim, de acordo com ela, foi rígido o suficiente para acabar com as boates na cidade e fechar todos os estabelecimentos. “Ele proibiu qualquer tipo de boate em Três Barras e Canoinhas. As casas explícitas foram fechadas e os bares, lugares mais calmos e com atendimento até às 22 horas foram fiscalizados. Se você não cumprisse o que ele determinava, o estabelecimento era fechado”, conta.
De acordo com os arquivos do CN, em 1.º de fevereiro de 2000, o comissário de polícia Luiz Rosa Peres fechou as portas do estabelecimento localizado no KM 6 em Três Barras, acabando com as chamadas “zonas” que se perpetuavam, prometendo mais ações contra os estabelecimentos, principalmente, no bairro São Cristóvão. A decisão não foi bem acolhida pelos donos de boates, que ameaçaram levar as meninas para fazer ponto na rua. As prostitutas que trabalhavam nesses estabelecimentos defendiam o direito de trabalhar nos locais específicos, mas, com o fechamento, de acordo com o CN, algumas planejavam ir embora. Segundo Arlete, a maioria ficou por aqui mesmo, fazendo ponto na rua ou se deslocando para os bares que se espalharam por Canoinhas e Três Barras e que, de acordo com ela, somente no Campo d’Água Verde, são cinco.
Mas, quem passa pela SC-280 iluminada por luzes vermelhas perto do trevo que dá acesso à cidade, nota que a era das boates explícitas em Canoinhas está voltando.
NOITE QUENTE FEITA COM ROSTOS TRISTES
A partir das 16 horas, as boates localizadas na Pedra Branca abrem as portas. Com as luzes vermelhas ainda apagadas, o ambiente é calmo e a música de fundo é a tocada por uma das rádios locais. Ambiente pequeno, um palco improvisado e uma juke box compõem o cenário, que contrasta com a imagem jovial, um tanto infantil, da menina que atende ao chamado. Sem maquiagem e com uma roupa juvenil, a moça mostra simpatia, mas não quer falar sobre os motivos que a levaram para os caminhos da prostituição. Sem revelar nome, idade ou qualquer outro detalhe, seus olhos marejam ao dizer que prefere não falar sobre sua vida. Situação compartilhada com outras mulheres, como Paula.
Para Arlete, que hoje não tem pudor de falar sobre sua vida e sobre os motivos que a levaram a prostituição, tal receio se justifica pelo histórico comum de violência e pobreza enfrentado pelas meninas. “A maioria veio de famílias sem nenhuma decência, de lares desestruturados, de ambientes de muita pobreza. Poder alimentar a família, garantir mais conforto para os irmãos, só isso é uma vitória”, revela. “E é nas boates que elas conseguem isso. Nas ruas, prostituta vira problema social”, reitera.
“MELHOR AQUI DO QUE NAS RUAS”
De acordo com a ex-prostituta, veterana e profunda conhecedora do assunto, problema maior, “muito maior”, segundo ela, é a prostituição nas ruas. “As meninas que trabalham aqui no meu bar são orientadas para usar camisinha, fazem exames de sangue periodicamente, me informam quando saem com algum cliente. Têm muito mais segurança. E a menina que está na rua? Muitas vezes é uma criança, que não sabe nem como usar o preservativo, não tem noção dos riscos que está correndo. Fica muito mais exposta, sofre mais violência”, afirma.
“A prostituição existe aqui e em qualquer outro lugar. É a profissão mais antiga do mundo. A sociedade recrimina, coloca à margem, mas foi a maneira que essas meninas conseguiram de se virar na vida. Mas, e se alguém resolver sair dessa vida? As duas meninas que trabalham comigo limpam a casa, lavam e passam minha roupa e fazem a comida. Trabalho impecável. Você daria emprego para uma p...?”, pergunta.
Explorar a prostituição é crime
De acordo com o comissário da Polícia Civil de Três Barras, Luiz Rosa Peres, uma das peças fundamentais para o fechamento das áreas de prostituição em 1999, a Lei aplicada na década passada ainda é válida. O artigo 229do Código Penal Brasileiro é claro e pune com rigidez quem promove ou se beneficia da prostituição: dois a cinco anos de prisão. Segundo Peres, três situações ligadas ao assunto são puníveis pela Lei brasileira: promoção de local para prostituição, favorecimento à prostituição e aliciamento de mulheres.
O comissário afirma que o ressurgimento das ‘casas da luz vermelha’ na cidade é ilegal, porque não existe maneira de legalizar as boates simplesmente porque não há alvará para que elas possam funcionar com esta característica. “Na época do fechamento de todos os estabelecimentos do gênero na região começaram a surgir os bares, que até um determinado tempo seguiram as determinações judiciais, mas, aos poucos e discretamente, voltaram a promover a prostituição. Somente na chamada rua Velha, na saída de Canoinhas, em Três Barras, contei mais de 19 estabelecimentos. Os ‘caras’ abrem os bares e, com o tempo, vão levando mulheres para trabalhar lá”.
De acordo com o delegado, o mascaramento da atividade é uma condição que atrapalha a fiscalização da Polícia, porque, para que o indiciamento seja realizado é necessária uma investigação que comprove as atividades irregulares, fato que, devido à quantidade dos estabelecimentos, se torna inviável. “Este é um caso parecido com o do jogo do bicho. Três Barras tem. Canoinhas tem. Mafra tem. No Brasil inteiro existe, em todo lugar. Esses lugares eram chamados de ‘casas de tolerância’ justamente por causa da tolerância da polícia em relação à sua existência. É praticamente impossível que acabem”, declara. Para o Superior Tribunal de Justiça (STF), que na segunda-feira, 9, aumentou as penas ligadas ao crime, o fato de haver tolerância ou indiferença na repressão criminal não significa que a conduta não está tipificada no Código Penal e que não seja passível da pena prevista.
O delegado regional Getúlio Scherer, responsável pela concessão de alvarás na Comarca, não foi encontrado pela reportagem.
“NINGUÉM QUER SER P...”
A prostituição, em si, não é considerada crime, tanto nos bares, casas noturnas ou nas ruas. Segundo Peres, o direito de ir e vir, garantido pela Constituição Brasileira permite que as mulheres se exponham e se prostituam. “Se a menina está fazendo ‘ponto’ na rua não há o que possa ser feito. Mesmo nas boates, elas não são criminosas. Nisto você não pode interferir. Se ela for menor de idade, aí sim é outra situação e o Conselho Tutelar pode ser contatado para que providências sejam tomadas”, explica.
Para quem trabalha na noite, a opção por ficar ao abrigo de uma casa noturna significa melhores condições de trabalho e, dadas as limitações, certo anonimato no exercício da profissão. “Ninguém que ser p... Pouquíssimas são as mulheres que entram nessa vida por opção própria. Elas dão prazer enquanto, na verdade, não sentem prazer nenhum. A satisfação delas está em poder comprar um chinelo novo, um pacote de fraldas ou a comida dos filhos. Para muitas mulheres, prostituição é sinônimo de sobrevivência. Isso não é vida fácil. Não é nada fácil ir para cama com alguém que você nem conhece, sem ter, ao menos, a chance de dizer não”, defende Arlete.
*Os nomes das profissionais foram trocados por fictícios a pedido das entrevistadas
Deixe seu comentário