Agência Brasil: Fora o seu trabalho especificamente, de quais outras formas o Brasil pode avançar nisso?
Rosana Paulino: Valorização da cultura no geral, isso é absolutamente essencial. Combate ao racismo religioso. Isso é também uma coisa absurda. O Brasil é um país que corre o risco de perder a sua própria identidade por conta do racismo religioso. Porque não se pode esquecer nunca que a cultura é diretamente ligada às manifestações religiosas, à música negra, a música brasileira, a de qualidade, pela qual o Brasil é conhecido mundialmente. A música brasileira é diretamente ligada à música de terreiro. É do terreiro que vem o samba. É do samba e de outras manifestações musicais negras que vêm do terreiro que a gente vai ter a base musical para a cultura brasileira. Durante muito tempo a cultura musical foi o destaque do Brasil no mundo, e o Brasil joga isso fora. Quando você não respeita as religiões de matriz africana, a gente vai muito além de uma questão simplesmente religiosa, a gente chega no cerne do que é ser brasileiro.
As coisas estão ligadas. Aqui no Brasil, a gente tem um hábito de ver cada coisa em uma caixinha. Mas está tudo entrelaçado, eu não posso pensar a cultura brasileira sem pensar em manifestação religiosa. É impossível. O que o Brasil faz, muitas vezes, abafa certas condições culturais religiosas, traz de fora um material de quinta [categoria] e coloca isso como se fosse uma matriz nacional, o que não é. E aí joga no lixo aquilo que poderia ter para oferecer para o mundo.
Porque senão a gente vai continuar nisso, uma cópia extremamente mal feita do Ocidente, e sem levantar a cabeça, o que é pior. Uma cópia que aceita tudo quanto é tranqueira que vem de fora, não produz, e com uma capacidade absurda de produção. E principalmente a academia. A academia no Brasil faz isso o tempo todo. Tem que empretecer a academia e descolonizar essa academia. A academia no Brasil, tem hora que dá vergonha: aceita tudo de fora e não propõe nada.
Agência Brasil: No dia do lançamento da cátedra, a escritora Conceição Evaristo disse que os pensadores negros não têm que ter modéstia.
Rosana Paulino: Eu concordo em gênero, número e grau com a Conceição. Não temos que ter modéstia. Temos é que nos colocar no mundo. O que acontece, o que valida muito a produção cultural no Brasil é a academia. Uma academia totalmente tomada por questões eurocêntricas e que não tem pulso para se rebelar. Vai aceitando de maneira passiva. É de uma passividade que me irrita profundamente.
Junta-se a isso o histórico da população negra, o modo como as culturas de matriz populares são relegadas ao segundo plano... isso é um caldo de sujeição a outras culturas – você não se colocar diante do mundo. Somos um país com um potencial absurdo. Só que se a gente não se assume como país, a gente não sai desse buraco. É essencial, sim, que a gente não tenha modéstia.
Agência Brasil: Em Samba da Benção, Vinícius de Moraes diz que "pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza". No seu trabalho, é preciso ter a memória do sofrimento étnico para criar obras que sirvam de conteúdo antirracista?
Rosana Paulino: Não. Eu não quero tristeza, quero reparação. É diferente. O povo preto é tão forte que consegue cantar e dançar em cima disso.
Agência Brasil: E se trocar tristeza por indignação?
Rosana Paulino: Aí rola. Mas se a gente for por essa tristeza, por esse banzo, a gente não tem escola de samba. Escola de samba para as pessoas negras é um veículo de educação extremamente poderoso. Eu começo a ter o meu letramento racial quando eu era adolescente, quando a Mocidade Alegre, lá de São Paulo, fez três enredos sobre a questão negra. O que é o cortejo de escola de samba? Ali não cabe essa tristeza para fazer cultura não, ali a gente põe indignação, a gente abre o assunto e ainda passa cantando.
Agência Brasil: Você já disse que o Brasil não se enxerga no espelho. Não se enxerga ou não quer se enxergar?
Rosana Paulino: Os dois. A elite não quer enxergar. A elite brasileira nunca se viu como brasileira. A elite brasileira se vê como coitados exilados na América do Sul. Ela não quer se ver como ela é. O povo, no geral, muitas vezes tem pressão religiosa, as religiões negras sempre foram demonizadas, isso está diretamente ligado à cultura, e isso vai criando um caldo de desperdício que vai afetar todas as áreas: da cultura ao meio ambiente.
Quem é Rosana Paulino
A artista vive em São Paulo, cidade onde nasceu, em 1967. É doutora em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), especialista em gravura pelo London Print Studio, de Londres, e bacharel em gravura pela ECA/USP.
Como artista, se destaca pela produção ligada a questões sociais, étnicas e de gênero. Possui obras em importantes museus, como o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), a Pinacoteca do Estado de São Paulo; o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp); Museu Afro-Brasil, em São Paulo; Malba e University of New Mexico Art Museum, no Novo México (EUA). Já expôs em cidades como Lisboa, Berlim, Veneza (Itália), Chicago (EUA) e Bruxelas, entre outras.
A Cátedra Pequena África surgiu de uma parceria entre a prefeitura do Rio de Janeiro e a FGV, com a proposta de ser um campo acadêmico para estudo e divulgação de pensadores negros. Possui um conselho consultivo formado pelos intelectuais negros: Ayrson Heráclito (artista e curador), Benedito Gonçalves (ministro do Superior Tribunal de Justiça), Conceição Evaristo (linguista e escritora), Dione de Oliveira (jornalista e diretora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB); Jurema Werneck (médica e diretora da Anistia Internacional), Muniz Sodré (sociólogo e escritor), Sonia Guimarães (cientista) e Thiago de Souza Amparo (advogado e professor FGV-SP).
De agosto a outubro, a cátedra realizará os ciclos individuais com as titulares, composto pelos cursos livres e roda de diálogos na Biblioteca Mário Henrique Simonsen. Em novembro, no dia 5, um seminário reunirá as três titulares, quando também serão convidados os participantes do comitê consultivo.
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